Fonte: O Estado de São Paulo,
01/04/2013
Medicina
da Morte
Carlos Alberto Di Franco
*
Título forte, polêmico? Não,
caro leitor. É a expressão concreta do sentimento de milhões de brasileiros
diante de recente proposta feita pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para a
liberação do aborto até a 12.ª semana de gestação. O presidente do CFM, Roberto
D'Ávila, na defesa de uma decisão que está em rota de colisão com a ética médica, esgrime argumentos que não
param em pé: "Vivemos em um Estado laico. Seria ótimo que as decisões fossem
adotadas de acordo com o que a sociedade quer e não como o que alguns grupos
permitem". A estratégia de empurrar os defensores da vida para o córner do
fundamentalismo religioso já não cola.
Um embrião e um feto (e querem
promover o aborto no terceiro mês da gravidez) são também pessoas, tanto do
ponto de vista científico como filosófico. É falsa a afirmação de que o feto faz
parte do corpo da mãe e que a mãe pode abortar por ter direito sobre o seu
próprio corpo. Na verdade, a mãe é a hospedeira, protetora e nutriz de um novo
ser diferente dela, um outro indivíduo. Biologicamente, o ser que está
aconchegado no seio da mãe é idêntico ao que estará sentado no seu colo com 3
meses ou à mesa com ela quando tiver 15, 20 ou 50 anos de idade. O embrião é
distinto de qualquer célula do pai ou da mãe; em sua estrutura genética, é
"humano", não um simples amontoado de células caóticas; e é um organismo
completo, ainda que imaturo, que - se for protegido maternalmente de doenças e
violência - se desenvolverá até o estágio maduro de um ser
humano.
Aprovar a autorização legal para
abortar, como bem comentam os filósofos Robert P. George e Christopher Tollefsen
em seu livro Embryo: a Defense of Human Life, é dar licença para matar uma certa
classe de seres humanos como meio de beneficiar outros. Defender os direitos de
um feto é a mesma coisa que defender uma pessoa contra uma injusta discriminação
- a discriminação dos que pensam que há alguns seres humanos que devem ser
sacrificados por um bem maior. Aí está exatamente o cerne da questão, que nada
tem que ver com princípios religiosos nem com a eventual crença na existência da
alma.
Hoje o que está sendo
questionado não é tanto a realidade biológica, inegável, a que acabo de me
referir, é coisa muito mais séria: o próprio conceito de "humano" ou de
"pessoa". Trata-se, portanto, de uma pergunta de caráter filosófico e jurídico:
quando se pode afirmar de um embrião ou de um feto que é propriamente humano e,
portanto, detentor de direitos, a começar pelo direito à
vida?
O desencontro das respostas
científicas - evidente - acaba deixando a questão sem um inequívoco suporte da
ciência. Fala-se de tantos dias, de tantos meses de gravidez... E se chega até a
afirmar, como já foi feito entre nós, que só somos seres humanos quando temos
autoconsciência. Antes disso, só material descartável ou útil para laboratório.
Mas será que um bebê de 2 meses ou de 2 anos tem
"autoconsciência"?
Perante essa perplexidade, é
lógico que se acabe optando pelo juridicismo. Cada vez mais, cientistas e
juristas vêm afirmando que quem deve decidir o momento em que começamos a ser
humanos e, em consequência, a ter direito inviolável à vida é a lei de cada
país. E é isto que querem fazer: embutir o aborto na reforma do Código Penal.
Ora, essas leis, por pouca informação que se tenha, variam de um país para outro
e dependem apenas - única e exclusivamente - de acordos, do consenso a que
chegarem os legisladores. Em muitos casos, mais que uma questão de princípios,
decidir-se-á por uma questão de pressões, ou por complexos comparativos, isto é,
pelo argumento de que não podemos ficar atrás dos critérios legais seguidos
pelos países desenvolvidos. Mas nem pressões nem complexos parecem valores
válidos para decidir sobre vidas humanas.
Quanto ao "consenso por
interesse", é útil recordar que fruto dele foi a legislação que durante séculos
definiu uma raça ou um povo como legalmente
infra-humanos e, portanto, podendo ser espoliados de direitos e tratados como
"coisas", também para benéficas experiências científicas: caso do apartheid dos
negros na África do Sul e dos judeus aviltados e trucidados pela soberania
"democrática" nazista.
O juridicismo, hoje prevalente,
equivale a prescindir de qualquer enfoque filosófico e naufragar nas águas
sempre mutáveis do relativismo. Nada tem um valor consistente, tudo depende do
"consenso" dos detentores do poder, movidos a pressões de interesses. Mas se é
para falar de consenso democrático, todas as pesquisas, sem exceção, têm sido
uma ducha de água fria na estratégia pró-aborto. O brasileiro é contra o aborto.
Não se trata apenas de uma opinião, mas de um fato medido em sucessivas
pesquisas de opinião. O CFM, representando uma minoria, está promovendo uma ação
nitidamente antidemocrática.
Não obstante a força do
marketing emocional que apoia as campanhas pró-aborto, é preocupante o veneno
antidemocrático que está no fundo dos slogans abortistas. Não se compreende de
que modo obteremos uma sociedade mais justa e digna para seres humanos (os
adultos) com a morte de outros (as crianças não nascidas).
Além disso, não sei como o
Conselho Federal de Medicina consegue articular sua proposta pró-aborto com o
juramento hipocrático. A posição da atual diretoria desse conselho, tal como
amplamente veiculada pelos meios de comunicação, não parece condizer com o
compromisso sobre o qual todos os médicos, velhos ou novos, algum dia juraram.
Não creio que o CFM represente o pensamento daqueles que, um dia, prometeram
solenemente empenhar sua profissão, seu saber e sua ciência na defesa da
vida.
* Carlos Alberto Di Franco é
doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, diretor do departamento de
Comunicação do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS). E-mail:
difranco@iics.org.br.
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